HIV in Blood Serum © David S. Goodsell 1999
O número de células fotossensíveis (cones e bastonetes) que
existem na retina do olho humano, cerca de 125 milhões, representa algo como 75
% do conjunto de todas as células que, em diferentes tecidos, estão envolvidas
em processos sensoriais! Isto é uma evidência da importância que a percepção
visual teve para a sobrevivência e evolução das espécies que nos deram origem e
nos antecederam ao longo de milhões de translações terráqueas.
Eco funcional deste investimento na percepção visual do que
nos rodeia, é o podermos antever, á distância, uma situação de perigo, um
trilho na floresta densa, um fruto maduro cujo valor nutritivo compensa o
esforço de nos deslocarmos para o ir comer. Não me admiraria se esta capacidade
em antever pudesse ter sido força motriz ou antecâmara do pensamento ou, mais
seguramente, na estruturação neuronal de um movimento.
Maior do que a sensação táctil da união das extremidades dos
dedos polegar e indicador deve ter sido a sensação visual e antevisão da
vantagem da oponibilidade, da precisão dos movimentos finos.
O método científico tem nele intrínseco, como parte
integrante, a observação (visual) da natureza, dos resultados experimentais. De
facto, quer na famosa experiencia da queda dos graves de Galileu em 1589 (na
qual os observadores viram que os dois corpos com massas diferentes,
largados ao mesmo tempo e da mesma altura, chegaram ao solo ao mesmo tempo),
quer na descoberta das bactérias através do microscópio óptico por Antoine van Leeuwenhoek
(em 1668), a visualização foi determinante para a verificação de uma hipótese,
para a descoberta da ainda hoje unidade fundamental da biologia, a
célula.
De facto, o desenvolvimento de tecnologia de visualização detalhada
mudou a nossa percepção sobre como a natureza está estruturada e permitiu-nos
entender inúmeros processos biológicos. Ao longo do século passado, a aplicação
do conhecimento da dualidade partícula onda e de como a radiação
electromagnética interage com a matéria permitiu o desenvolvimento de diversas
técnicas de imagiologia, como sejam a radiologia convencional, a ecografia, a tomografia axial
computorizada (TAC), a ressonância magnética (RM), etc.,
auxiliares incontornáveis ao diagnóstico médico.
Mas esse conhecimento permitiu
descobrir a arquitectura intracelular (microscópio electrónico, microscopia de
fluorescência, microscopia de força atómica, etc.), a organização de miríades
de interacções biomoleculares e estabelecer que a estrutura tridimensional das
biomoléculas (cristalografia por difracção de raios X, Ressonância Magnética Nuclear,
etc.) condiciona e determina a sua função, directriz estruturante do pensamento
bioquímico. Na realidade, a Bioquímica estuda a interacção e a dinâmica entre
moléculas numa perspectiva tridimensional e ao longo do tempo. Ou seja, é 4D
tal como a vida!
Recordemos os trabalhos de Linus Pauling, Watson, Crick e Rosalin
Franklin e tantos outros que, a partir dos estudos da interacção da radiação
com cristais de proteínas e ácidos nucleicos, não só determinaram as
respectivas estruturas tridimensionais (estrutura em hélice alfa das proteínas,
estrutura em dupla hélice do ADN) assim como estabeleceram os mecanismos das
suas funções biológicas. Mostraram que sem o conhecimento detalhado da
estrutura é muito improvável que consigamos entender os processos bioquímicos e
a dinâmica intrínseca à vida.
Os avanços na electrónica, ocorridos principalmente desde o
último quartel do século XX, permitiram o desenvolvimento de tecnologias de
visualização estrutural mais precisas, com menos ruído de fundo, logo mais
detalhadas e sobreponíveis a uma realidade com dimensões nanometricas.
Assistimos ao aparecimento e divulgação de equipamentos de imagem que fornecem
informação tridimensional de amostras biológicas. Algumas, como a microscopia electrónica
de varrimento (SEM), a de força atómica (AFM), a de efeito de túnel (STM) ou a
microscopia de fluorescência confocal, permitem inclusive a obtenção de
sequências cronológicas de imagens sub-microscópicas, permitindo a reconstrução,
a posteriori, de fenómenos à escala bioquímica.
Paralelamente, os avanços nas aplicações tecnológicas das
propriedades dos semicondutores, com o concomitante incremento na habilidade em
miniaturizar, tem feito imergir exponencialmente uma capacidade e velocidade de
cálculo impressionante nos processadores integrados nas máquinas conhecidas por
computadores. Isto permitiu o desenvolvimento e rápida disseminação de
excelentes softwares de tratamento de imagem, de modelação 3D, de simulação de
interacções moleculares.
Esta convergência no desenvolvimento científico e
tecnológico pluridisciplinar fez explodir miríades de representações visuais de
um há muito anunciado mundo novo.
Passaram a ser familiares e comuns as imagens
tridimensionais de proteínas no Protein Data Bank, assim como os desenhos
perspectivados na aguarela de David Goodsell nas moléculas do mês. Pura arte molecular! Não menos
relevante é o seu trabalho, actualizado na última edição do seu livro
“Machinery of Life” (2009), em que utiliza a sua arte pictórica e o seu
conhecimento bioquímico para nos apresentar instantes de um mundo biomolecular
sempre em hora de ponta!
Por outro lado, a simulação molecular com parâmetros e
ajustes que cada vez se aproximam mais das condições naturais, não só tem
galvanizado o conhecimento, por exemplo, das interacções proteína-ligando
(“docking”), como tem permitido o rápido desenvolvimento de novos fármacos o
que torna viável a aproximação “from bench to bed side” apanágio da medicina e
investigação translacional, ruptura epistemológica do século XXI. Ainda desta
perspectiva, a simulação molecular permite validar modelos 3D da realidade
nanoscópica e, assim, permitir a produção de filmes totalmente 3D e em
estereoscopia que se transformam em potenciais e revolucionários instrumentos
para o ensino das ciências da saúde e da vida.
Até porque é preciso uma grande capacidade de abstracção e visualização espacial para conseguir aprender estruturas e relações que só
funcionam devido à sua evolução tridimensional, no espaço e no tempo, em suportes
bidimensionais em que a evolução temporal exige o virar de uma página.
Ainda não sabemos medir ou prever o impacto que a
visualização 3D animada e estereoscópica (4D) dos processos bioquímicos causará
sobre a nossa capacidade em apreender mais intuitivamente. Mas sabemos que já é
uma realidade e que está para ficar e se desenvolver na aurora deste século
novo.
António Piedade