Entrevista ao Professor Doutor Salvador Massano Cardoso, Director do Instituto de Higiene e Medicina Social da FMUC, sobre a tuberculose.
António Piedade - Segundo a OMS, a cada segundo que passa, ou seja, a cada duas palavras desta pergunta, uma nova pessoa no mundo é infectada pela bactéria Mycobacterium tuberculosis, causadora da tuberculose. Cerca de um terço da população mundial está infectada pelo bacilo. Pode contextualizar a epidemiologia da doença em Portugal?
Massano Cardoso - O decréscimo da prevalência da tuberculose em Portugal é, desde há muitos anos, uma realidade que merece ser destacada. Presentemente, o número de novos casos registados coloca-nos numa posição intermédia com uma taxa de incidência de 24 por 100 mil habitantes. O “desejável” seria baixar para menos de 20 por 100 mil habitantes. Quando se atingem taxas desta natureza, é preciso muito esforço para que se possa observar uma ligeira redução. Sendo assim, no futuro, é de esperar que continuemos a observar melhorias, mas, seguramente, a um ritmo lento. Em termos geográficos existe uma grande variação da incidência da tuberculose, sendo as áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto as mais atingidas. Aparentemente poderá parecer um paradoxo, ou seja, as áreas mais desenvolvidas são precisamente as que apresentam taxas de incidência mais elevadas. A justificação tem a ver com os atuais fatores de risco da tuberculose, toxicodependência, infeção VIH/Sida, imigrantes, condições facilitadoras do contágio nos bairros e cinturões dos polos de atração. Quanto aos grupos de risco, os já enunciados constituem uma preocupação muito séria, a par dos tradicionais, nomeadamente profissionais de saúde. Numa perspetiva epidemiológica, um bom empenhamento e adequada coordenação na luta contra a tuberculose não deixará de continuar a dar resultados positivos. Estamos perante uma velha doença que “sabe” aproveitar todos os condicionalismos sociais, comportamentais e económicos para se manter ativa. Portugal reúne muitos desses condicionalismos.
AP - O aumento no número de pessoas infectadas é acompanhado por um aumento de mortes devidas à doença tuberculosa?
MC - A relação morbilidade/mortalidade é linear. Quantos mais casos maior o risco de morte. No caso vertente, apesar da terapêutica e do sucesso da mesma, desde que cumpridas as regras, que, diga-se em abono da verdade, nem sempre são fáceis de cumprir, já que exige adesão durante um período longo, tem-se observado casos mortais. No contexto mundial, a realidade é particularmente confrangedora, chegando nalgumas regiões do globo a ser mesmo obscena, revelando incompetência e falta de cuidados na prevenção e tratamento.
AP - Quais os factores que nos ajudam a explicar este aumento na incidência da infecção pelo bacilo de Koch? Qual o peso, neste aumento, da resistência bacteriana às terapêuticas antibióticas utilizadas?
MC - A tuberculose esteve sempre ligada a problemas de fragilidade biológica condicionada pela falta de higiene, má alimentação e superpovoamento, além de outras patologias que se acompanham de diminuição da capacidade imunológica. Nos últimos séculos terá sido a doença que mais influenciou, em termos evolutivos, a espécie humana, ao selecionar os mais resistentes que, decerto, possuirão características biológicas próprias, as quais poderão ser responsáveis por alguns problemas de saúde típicos da sociedade moderna. De qualquer modo, a par dos fatores “clássicos”, que continuam a predominar, mesmo entre nós, a “chegada” de novos comportamentos e de novas doenças contribuíram para a sua propagação. A toxicodependência é um deles, assim como a infeção pelo VIH/Sida. Estamos perante uma doença que pode e deve ser combatida a vários níveis. Talvez o mais importante é a atuação a montante, mas muito a montante, a nível social, cultural, económico e até político de um país. Trata-se de uma doença que preenche perfeitamente os requisitos para mostrar a importância da “Network Science” (Ciência das Redes). Medidas culturais, alimentares, habitacionais, organizacionais e económicas acabam por reduzir de uma forma efetiva muitas doenças, tais como: a sida, a tuberculose ou a toxicodependência que, na periferia da rede, acabam por se entrelaçar de forma muito perigosa. Estamos perante uma doença cuja terapêutica social, numa perspetiva de prevenção, é extraordinariamente eficaz. Quanto se manifesta clinicamente, o recurso aos fármacos é indispensável, podendo, na grande maioria dos casos resolver o problema. No entanto, o número de casos de tuberculose resistentes à terapêutica é uma realidade preocupante, que, aliada à falta de investigação de novos fármacos no seu combate, preocupa, e muito, os responsáveis.
AP - Os artigos agora publicados nas duas principais revistas generalistas de referência para a Medicina (The Lancet e New England Journal of Medicine), sublinham a necessidade urgente de um teste mais rápido e preciso para a detecção do bacilo de Koch e das suas estirpes mais resistentes aos antibióticos utilizados. Qual a importância do tempo de diagnóstico para o controlo do contágio e infecção e, consequentemente, no número de casos doentes?
MC - O diagnóstico precoce desta doença é vital por duas ordens de razão. A primeira, prende-se com a facilidade e rapidez da terapêutica no indivíduo sofredor, a segunda com a diminuição do risco de contágio. Não esquecer que, muitas vezes, o diagnóstico é feito já numa fase relativamente avançada da doença. Cursa silenciosamente durante algum tempo. Traiçoeiramente mina o doente, aproveitando-se do facto para se propagar. Um diagnóstico precoce permitirá um combate muito mais eficiente, e, quem sabe, controlar, no futuro, em níveis relativamente baixos. Qualquer expectativa de erradicação do bacilo de Koch é uma utopia, porque a natureza e as características do germe em questão irão, como é fácil de prever, contornar todas as nossas medidas e intervenções. O microcosmo é um mundo que vive facilmente sem o homem, mas o homem não consegue dispensá-lo. Não esquecer que o bacilo responsável pela tuberculose já existia antes de “entrarmos” neste mundo e irá continuar após o nosso desaparecimento. Um vencedor anunciado.
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