domingo, 3 de novembro de 2013

A BIOQUÍMICA EM 4D

HIV in Blood Serum © David S. Goodsell 1999 



O número de células fotossensíveis (cones e bastonetes) que existem na retina do olho humano, cerca de 125 milhões, representa algo como 75 % do conjunto de todas as células que, em diferentes tecidos, estão envolvidas em processos sensoriais! Isto é uma evidência da importância que a percepção visual teve para a sobrevivência e evolução das espécies que nos deram origem e nos antecederam ao longo de milhões de translações terráqueas.

Eco funcional deste investimento na percepção visual do que nos rodeia, é o podermos antever, á distância, uma situação de perigo, um trilho na floresta densa, um fruto maduro cujo valor nutritivo compensa o esforço de nos deslocarmos para o ir comer. Não me admiraria se esta capacidade em antever pudesse ter sido força motriz ou antecâmara do pensamento ou, mais seguramente, na estruturação neuronal de um movimento.

Maior do que a sensação táctil da união das extremidades dos dedos polegar e indicador deve ter sido a sensação visual e antevisão da vantagem da oponibilidade, da precisão dos movimentos finos.

O método científico tem nele intrínseco, como parte integrante, a observação (visual) da natureza, dos resultados experimentais. De facto, quer na famosa experiencia da queda dos graves de Galileu em 1589 (na qual os observadores viram que os dois corpos com massas diferentes, largados ao mesmo tempo e da mesma altura, chegaram ao solo ao mesmo tempo), quer na descoberta das bactérias através do microscópio óptico por Antoine van Leeuwenhoek (em 1668), a visualização foi determinante para a verificação de uma hipótese, para a descoberta da ainda hoje unidade fundamental da biologia, a célula.

De facto, o desenvolvimento de tecnologia de visualização detalhada mudou a nossa percepção sobre como a natureza está estruturada e permitiu-nos entender inúmeros processos biológicos. Ao longo do século passado, a aplicação do conhecimento da dualidade partícula onda e de como a radiação electromagnética interage com a matéria permitiu o desenvolvimento de diversas técnicas de imagiologia, como sejam a radiologia convencional, a ecografia, a tomografia axial computorizada (TAC), a ressonância magnética (RM), etc.,  auxiliares incontornáveis ao diagnóstico médico. 

Mas esse conhecimento permitiu descobrir a arquitectura intracelular (microscópio electrónico, microscopia de fluorescência, microscopia de força atómica, etc.), a organização de miríades de interacções biomoleculares e estabelecer que a estrutura tridimensional das biomoléculas (cristalografia por difracção de raios X, Ressonância Magnética Nuclear, etc.) condiciona e determina a sua função, directriz estruturante do pensamento bioquímico. Na realidade, a Bioquímica estuda a interacção e a dinâmica entre moléculas numa perspectiva tridimensional e ao longo do tempo. Ou seja, é 4D tal como a vida!

Recordemos os trabalhos de Linus Pauling, Watson, Crick e Rosalin Franklin e tantos outros que, a partir dos estudos da interacção da radiação com cristais de proteínas e ácidos nucleicos, não só determinaram as respectivas estruturas tridimensionais (estrutura em hélice alfa das proteínas, estrutura em dupla hélice do ADN) assim como estabeleceram os mecanismos das suas funções biológicas. Mostraram que sem o conhecimento detalhado da estrutura é muito improvável que consigamos entender os processos bioquímicos e a dinâmica intrínseca à vida.

Os avanços na electrónica, ocorridos principalmente desde o último quartel do século XX, permitiram o desenvolvimento de tecnologias de visualização estrutural mais precisas, com menos ruído de fundo, logo mais detalhadas e sobreponíveis a uma realidade com dimensões nanometricas. Assistimos ao aparecimento e divulgação de equipamentos de imagem que fornecem informação tridimensional de amostras biológicas. Algumas, como a microscopia electrónica de varrimento (SEM), a de força atómica (AFM), a de efeito de túnel (STM) ou a microscopia de fluorescência confocal, permitem inclusive a obtenção de sequências cronológicas de imagens sub-microscópicas, permitindo a reconstrução, a posteriori, de fenómenos à escala bioquímica.

Paralelamente, os avanços nas aplicações tecnológicas das propriedades dos semicondutores, com o concomitante incremento na habilidade em miniaturizar, tem feito imergir exponencialmente uma capacidade e velocidade de cálculo impressionante nos processadores integrados nas máquinas conhecidas por computadores. Isto permitiu o desenvolvimento e rápida disseminação de excelentes softwares de tratamento de imagem, de modelação 3D, de simulação de interacções moleculares.

Esta convergência no desenvolvimento científico e tecnológico pluridisciplinar fez explodir miríades de representações visuais de um há muito anunciado mundo novo.

Passaram a ser familiares e comuns as imagens tridimensionais de proteínas no Protein Data Bank, assim como os desenhos perspectivados na aguarela de David Goodsell nas moléculas do mês. Pura arte molecular! Não menos relevante é o seu trabalho, actualizado na última edição do seu livro “Machinery of Life” (2009), em que utiliza a sua arte pictórica e o seu conhecimento bioquímico para nos apresentar instantes de um mundo biomolecular sempre em hora de ponta!

Por outro lado, a simulação molecular com parâmetros e ajustes que cada vez se aproximam mais das condições naturais, não só tem galvanizado o conhecimento, por exemplo, das interacções proteína-ligando (“docking”), como tem permitido o rápido desenvolvimento de novos fármacos o que torna viável a aproximação “from bench to bed side” apanágio da medicina e investigação translacional, ruptura epistemológica do século XXI. Ainda desta perspectiva, a simulação molecular permite validar modelos 3D da realidade nanoscópica e, assim, permitir a produção de filmes totalmente 3D e em estereoscopia que se transformam em potenciais e revolucionários instrumentos para o ensino das ciências da saúde e da vida.
Até porque é preciso uma grande capacidade de abstracção e visualização espacial para conseguir aprender estruturas e relações que só funcionam devido à sua evolução tridimensional, no espaço e no tempo, em suportes bidimensionais em que a evolução temporal exige o virar de uma página.


Ainda não sabemos medir ou prever o impacto que a visualização 3D animada e estereoscópica (4D) dos processos bioquímicos causará sobre a nossa capacidade em apreender mais intuitivamente. Mas sabemos que já é uma realidade e que está para ficar e se desenvolver na aurora deste século novo.

António Piedade