quarta-feira, 27 de abril de 2011

NDM-1: UM PERIGO PARA A SAÚDE PÚBLICA?


Crónica semanal publicada no Diário de Coimbra.

Tem-se verificado nos últimos anos um reacender constante do debate sobre a eficácia dos antibióticos que usamos para combater as doenças causadas pelas bactérias patogénicas que nos colonizam.

Após algumas décadas de aparente controlo e eficácia garantida por um conjunto de antibióticos ditos de última geração, começam a surgir casos de preocupação para a saúde pública, caracterizados por um aumento daresistência bacteriana às “balas mágicas”.

Inúmeros relatórios oficiais e artigos em revistas científicas generalistas como a “Nature” ou a “Science”, ou de especialidade médica como a “The Lancet” ou a “New England Journal of Medicine", têm posto a nu algumas fragilidades na luta contra várias bactérias causadoras de doenças severas e mesmo mortais.




No meio de várias preocupações com diversos microrganismos que adquiriram resistência aos antibióticos a eles específicos, a bactéria do momento, ou melhor, o grupo de bactérias colunáveis e de primeira página são aquelas que possuem o gene que codifica uma enzima designada porNDM-1 (de New Delhi metallo-β-lactamase 1). Descoberta em 2008 em Nova Deli, num paciente sueco, em viagem pela Índia, contaminado com uma estirpe de klebsiella pneumoniae (causadora de pneumonia), aquela enzima confere a estas estirpes uma “super-resistência” aos antibióticos que actuam pela “destruição” da parede externa feita de peptidoglicano, protecção essencial das bactérias classificadas por gram-negativas. No geral as bactérias que possuem esta enzima resistem a todos os antibióticos excluindo as polimixinas. Estas são antibióticos polipeptídicos, abandonados da prática clínica entre 1970 e 1980 devido à sua elevada toxicidade sobre o organismo humano. O aparecimento de estirpes bacterianas multirresistentes “obrigou” à sua utilização de última linha em ambiente hospitalar.

Estudos subsequentes permitiram identificar a nova estratégia resistente presente em vários géneros de bactérias da família Enterobacteriaceae (que inclui muitas das que nos são patogénicas como a Salmonella ou aEscherichia), em vários países incluindo a Inglaterra, em ambiente hospitalar e muito recentemente em águas de abastecimento público em Deli (http://www.thelancet.com/journals/laninf/article/PIIS1473-3099(11)70059-7/abstract). A maior parte das investigações indica que o elemento genético que codifica a NDM-1 possui também informação genética para proteínas que funcionam com bombas que expulsam os antibióticos para fora das bactérias, assim como ainda outras informações que facilitam a sua disseminação no mundo microbiano. É um exemplo de adaptação bacteriana de última geração que faz uso da rede global de partilha de informação genética bacteriana útil em prática há milhões de anos.

Apesar da “contaminação” da rede de água pública na cidade indiana referida, a Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou na semana passada vários comunicados para os media retirando peso ao alarme do perigo para a saúde pública, quer local quer mundial, contrapondo a necessidade de mais investigação para determinar o grau de perigo efectivo. De facto, os poucos estudos já publicados sobre as bactérias que apresentam a NDM-1, mostram que as bactérias não se tornaram mais patogénicas, “apenas” adquiriram uma multiressistência alargada a todos os antibióticos em uso! Segundo a OMS, são necessários mais estudos para fundamentar a necessidade de alterar ou alargar os procedimentos de prevenção.

Enquanto isso, os meios de comunicação bacterianos partilham o elemento genético que contém o gene para a super-multi-ressistência e espalham a boa nova bioquímica no “In Bacteria News”: Com NDM-1 sobrevives a qualquer droga humana!

QUESTIONÁRIO SOBRE ESCRITA NA COMUNICAÇÃO CIENTÍFICA

domingo, 24 de abril de 2011

Revisitando uma Opinião de H.G. Wells sobre Portugal

A propósito de uma sessão muito interessante sobre "Ficção Científica no Ensino da Ciência", que decorreu hoje dia 9 de Abril, de tarde, no Exploratório Ciência Viva, em Coimbra, Carlos Fiolhais guiou os presentes por uma breve visita á história da ficção científica.


Uma das constatações, muito curiosa, foi a de que a ciência moderna e a ficção cientifica nasceram num mesmo berço, pelas penas de um Francis Bacon (The New Atlantis, 1624), primeiro filósofo do método científico, ou de um gigante da ciência como Johannes Kepler(Somnium - Sonho - 1634).

Depois de revisitar vários autores incontornáveis (Cyrano Bergerac, JulesVerne, entre outros), Carlos Fiolhais deteve um pouco o nosso passeio em H. G. Wells (autor de "A Guerra dos Mundos", por exemplo) e leu uma passagem do seu livro de 1924 “A Year of Prophesying” (Fisher Unwin, Londres), cujo capítulo 25 é dedicado a Portugal. A páginas tantas Wells escreve o seguinte sobre o Portugal de então:

"Quer esteja a chover ou não, o ar em Portugal tem uma felicidade particular e as pessoas desse país deviam ser tão felizes e prósperas como qualquer povo do mundo. O país tem uma situação magnífica e grandes territórios ultramarinos. Lisboa é o porto natural da Europa para a América do Sul e para a África Ocidental. As oliveiras e as laranjeiras e espécies semelhantes podem ser aqui cultivadas nas melhores condições possíveis. A riqueza mineral é muito diversa e extensa, embora em larga medida inexplorada, e inclui filões radioactivos de importância mundial. E por aí fora. Existem todas as condições para haver uma grande prosperidade. Mas, de facto, nunca vi uma nação com um aspecto tão pouco próspero. Uma enorme pobreza prevalece em toda esta terra. Nunca vi em lado nenhum do mundo, nem sequer na Rússia, trabalhadores tão andrajosos, tão remendados e esfarrapados, tão manifestamente mal-cuidados e subnutridos. E há também numerosas doenças que podiam ser prevenidas. As mulheres estão velhas aos trinta anos, dando à luz filhos que vão morrer; os homens estão corcundas aos cinquenta. As casas mais pobres são casebres, e metade da população é analfabeta. E, no entanto, não se trata de uma população inferior."

E neste mesmo De Rerum Natura, Carlos Fiolhais já nos apresentara (aqui) as interrogações de Wells sobre Portugal.

"(...) Os comboios em Portugal estão num estado miserável e as estradas metem medo. Por todo o lado se vêem sinais evidentes de uma administração incompetente ou corrupta. Um pequeno país como este, com uma moeda instável, não consegue assegurar uma educação moderna para o seu povo. Não existe um público que leia o suficiente para manter uma imprensa com poder e uma literatura de crítica política. Os ministros não são suficientemente vigiados. E sobre as coisas que se passam nas colónias portuguesas dificilmente podemos saber alguma coisa lendo a imprensa portuguesa. Parece que não existe opinião pública que olhe para lá. Os portugueses que enriquecem nas colónias depositam e investem o seu dinheiro no estrangeiro, em geral em Londres; há uma saída permanente destes tributos do império português para os estados maiores e mais estáveis. Em nenhum lado da Europa se tem um sentimento tão intenso de um país penhorado ao capital guardado lá fora.”

Pura predição ficcionista com cerca de 90 anos de antecedência? É que salvaguardando algumas alterações geográficas no palco da ordem internacional, de analfabetismo, de saúde pública, podemos rever muitos portugueses (e não Portugal) neste retrato. Descubra as diferenças!

O MANTO PÚRPURO



Crónica publicada no semanário conimbricense "O Despertar".

“Revestiram-no de um manto de púrpura e puseram-lhe uma coroa de espinhos, que tinham entretecido.” (São Marcos 15,17)

Na paixão de Cristo o manto púrpuro é omnipresente.

Sinal de realeza, os tecidos tingidos de cor púrpura foram os mais usados por reis e imperadores durante milénios. Uma das razões para essa escolha tecia-se com a raridade e a dificuldade em obter os corantes capazes de tingir de púrpura os tecidos.

Nas civilizações Mediterrânicas, a principal fonte do corante estava incrustada em secreções mucosas da glândula hipobranquial e nas conchas protectoras de duas espécies de molusco gastrópodes do género Murex do Mar Interior: Murex brandaris e Murex trunculus (hoje conhecidos porHaustellum brandaris e Hexaplex trunculus, respectivamente).

Os fenícios eram exímios extractores do corante com o qual tingiam os tecidos púrpuros que comercializavam. Contudo, para tingir um metro quadrado de tecido era necessária uma centena de conchas ou sacrificar cerca de dez mil moluscos para extrair cerca de uma grama de pigmento! Não é de estranhar a rápida rarefacção das populações daqueles moluscos e das conchas acumuladas junto às costas por milhões de marés. 

Um dos episódios ilustrativos da raridade do corante é a recusa que terá sido imposta à esposa do imperador romano Aureliano, impedindo-a de comprar tecidos de cor púrpura. Um quilo de tecido tingido com o corante extraído das conchas custaria mais de 20 mil euros aos preços de hoje. Os seus apetites de vestuários púrpuros não eram comportáveis mesmo para a Imperial Roma.


Dada a procura e a raridade daquela fonte, outras foram exploradas e o engenho aguçado foi encontrando corantes substitutos para aproximar a realeza à cor púrpura. Várias foram as aproximações: desde as fórmulas de corantes incluídas no alquímico “Papiro de Estocolmo” (Papyrus Graecus Holmiensis) escrito provavelmente no século III; até um processo envolvendo tingimento com uma cera chinesa designada por “batik” no século sétimo d.C.


Mas só em meados do século XIX foi encontrado uma solução para resolver a púrpura raridade. Um químico inglês, de nome Williams Perkin, enquanto investigava um método para a síntese laboratorial de quinino, um composto orgânico necessário para atenuar o flagelo da malária, descobreacidentalmente, curiosamente durante a Páscoa de 1856, a substância púrpura de anilina, também conhecida por malva ou mauveína (C26H23N4+ X- fórmula química da mauveína A).


No atalho da investigação, Perkin sintetizou o primeiro corante artificial orgânico de sucesso na indústria têxtil, paradigma de uma nova era da indústria química e que haveria de tonalizar o tecido social com que se vestiu massivamente a organização da sociedade que se lhe seguiu. Mesmo que raramente os cidadãos se vistam com cores púrpuras…de paixão, de renovada esperança.

PÁSCOA EM…LUA CHEIA



Crónica publicada no Diário de Coimbra.

Porque é que a Lua está sempre em fase cheia na semana Pascal?

Desde os primórdios da cristandade que a data da Páscoa, dia em que se celebra a ressurreição de Cristo, é fundamental para a estruturação de todo o calendário litúrgico cristão.

A determinação inequívoca do dia da Páscoa para que esta seja celebrada no mesmo dia do calendário por toda a cristandade, independentemente da sua localização geográfica, constituiu um problema que só foi normalizado no primeiro concílio de Nicéia em 325 d.C.

Nesse concílio, convocado pelo imperador romano Constantino, foi determinado que o dia da Páscoa fosse celebrado no primeiro Domingo depois da primeira Lua Cheia que ocorra em ou logo a seguir ao equinócio da primavera, no hemisfério norte (21 de Março).

Mas a determinação do equinócio, através do calendário então seguido, não garantia uma “coincidência” entre a previsão e a realidade, por imperfeição contida no mesmo. O calendário Juliano (assim designado em honra a Júlio César) em vigor ao tempo do primeiro concílio de Nicéia continha em si uma imprecisão de cerca de 11 minutos e 14 segundos em excesso em cada ano.


Por volta de 1582, a inexactidão do calendário Juliano teve como resultado que o equinócio da primavera ocorreu no dia 11 em vez de 21 de Março como se esperaria. Este desfasamento, introduzia erros no calendário religioso cristão e, na prática, o dia de Páscoa era celebrado em dias diferentes em diversos pontos do hemisfério. Era preciso fazer alguma coisa para reacertar o calendário oficial.


O Papa Gregório XIII (1502 - 1585) criou uma comissão liderada pelo jesuíta matemático e astrónomoChristoph Clavius(1537-1612) para resolver o problema. É de referir que este Papa terá convidado primeiramente o matemático português Pedro Nunes (1502 - 1578) para solucionar o problema, mas este morreria antes de acabar essa tarefa.


Na sua bula InterGravissimas, o Papa Gregório XIII consagra o trabalho matemático einstitucionaliza o calendário que ainda hoje seguimos no ocidente e que tem o seu nome (calendário gregoriano). Resulta de um muitosatisfatório conjunto de regras de acertos regulares nos anos ditos bissextos, o que assegura um compromisso aceitável na predição dos movimentos relativos de translação da Terra ao redor do Sol e da Lua em redor da Terra.

Acrescente-se, contudo, que a determinação do dia de Lua Cheia, para a determinação do domingo pascal, não faz uso das tabelas astronómicas, mas sim do definido nas Tabelas Eclesiásticas que, apesar de não incluírem com rigor o movimento complexo da órbita da Lua, são suficientes para permitir uma regular e uniforme determinação de um mesmo momento por toda a cristandade, independentemente da sua latitude e longitude.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

UM MUNDO IMAGINADO, MAS MUITO REAL





Em 1988, vivi de forma intensa e maravilhado “um mundo imaginado”. Uma experiência real de investigação científica através de um livro, com aquele título, então publicado na língua portuguesa pela Gradiva, editora que me ensinou a caminhar na ciência.

Linha após linha, página após página, eu, então jovem estudante de Bioquímica na Universidade de Coimbra, vivi 5 anos de uma história real e intensa de descoberta científica, num só fôlego, numa noite que se fez dia inúmeras vezes. 

Vivi, através do relato rigoroso e apaixonado de June Goodfield, autora do livro, os dias e as noites sem horário, a entrega persistente e lúcida, os avanços e retrocessos, os obstáculos e os recuos, a alegria e o desespero silencioso do processo científico efectuado sob a linha do desconhecido por uma promissora cientista portuguesa a trabalhar nos Estados Unidos. 

A cientista era a Bióloga Maria de Sousa, Professora Catedrática de Imunologia do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, Jubilada em Outubro de 2009 (ver aqui vídeo da sua última aula) e agora homenageada pela Universidade de Coimbra com a atribuição do prémio desta instituição. Sublinho uma das inúmeras frases de referência que, nessa sua aula de jubilação, Maria de Sousa proferiu ao dizer, cito de cor, que ao longo da sua carreira só fez aquilo que sabia fazer: trabalhar!

A investigação em causa, uma caminhada árdua de cinco anos no Cornell Medical College, em Nova Iorque, na segunda metade da década de 70 do século passado e que produziu uma grande descoberta relacionada com o sistema imunitário, mais especificamente com o Linfoma de Hodgkin.

Mais do que um relato é um retrato vivo, com molduras que se abrem em novos quadros a cada obstáculo ultrapassado, com nevoeiros densos a dificultar a leitura de algumas derrotas, de becos aparentes que pareciam esfumaçar, com o folhear de uma página, anos de trabalho árduo.

Nesta hora de homenagem e reconhecimento da Universidade de Coimbra a esta sempre discreta mas incontornável referência do melhor da investigação científica, na sua área a nível mundial, realço a qualidade da sua dedicação ao trabalho científico, as descobertas que fizeram e fazem escola e que aparecem agora facilitados no tempo pela excelência da sua pessoa humana. 

A enormidade da discrição enquanto pessoa contrasta abismalmente com a importância incontornável do seu trabalho científico. De referir que Maria Sousa produziu, desde 1960, artigos científicos cruciais à definição da estrutura funcional dos órgãos que constituem o sistema imunológico, descobrindo em 1971, um fenómeno que pode ser descrito pela capacidade de células imunitárias de diferentes origens migrarem e se organizarem em áreas bem determinadas dos órgãos linfóides periféricos, processo celular que designou e é conhecido por “ecotaxis”. Foi e é pioneiro o seu trabalho sobre a importância da homeostase do ferro no organismo e a relação das suas perturbações com várias patologias.



No capítulo da divulgação de ciência e da formação sobre o que é o dia-a-dia de quem faz ciência, deveria ser obrigatório ler este “Mundo Imaginado”, apesar de esgotado no editor (de June Goodfield, Gradiva, coleccção Ciência Aberta nº 9), para mim, e para muitos, um dos melhores livros sobre ciência e talvez o melhor sobre ciência em acção directa. 

Para progredirmos temos de aprender com os exemplos dos melhores, independentemente da sua área. E no panorama da realização científica portuguesa das últimas décadas Maria de Sousa é incontornável. Ou, como ela com certeza corrigiria, o seu trabalho é que é incontornável.

António Piedade